O zoneamento urbano sempre foi uma das ferramentas mais polêmicas e, ao mesmo tempo, mais poderosas de planejamento das cidades. Em São Paulo, a Lei 16.402/2016, que regulamenta o Plano Diretor Estratégico de 2014, representou uma das maiores mudanças nas regras de uso e ocupação do solo nas últimas décadas.
Mas será que ela realmente trouxe os avanços urbanos prometidos? Ou estamos apenas reorganizando as desigualdades históricas da cidade sob uma nova roupagem? Hoje, convido você a olhar para o zoneamento paulistano de uma maneira mais crítica, como um urbanista que enxerga a cidade além dos mapas oficiais.
Primeiramente, precisamos entender: O zoneamento urbano é uma ferramenta de ordenação do espaço que define o que pode ser construído e como cada área da cidade pode ser utilizada. Idealmente, ele serve para organizar o crescimento urbano, proteger áreas ambientais, garantir o acesso à infraestrutura e promover justiça social e territorial. Mas na prática, depende muito de quem está no comando político e econômico da cidade.
São Paulo tem uma longa história de desigualdade territorial. Desde o início do século XX, o zoneamento serviu mais como um instrumento de controle de classes sociais do que de equilíbrio urbano. A cidade cresceu de forma periférica, com a elite protegendo suas áreas bem servidas e relegando a população de baixa renda às margens da metrópole.
Quando o Plano Diretor Estratégico (PDE) de 2014 foi aprovado, havia uma grande expectativa: tornar São Paulo uma cidade mais compacta, inclusiva e sustentável. O discurso era de “redistribuir oportunidades urbanas”, aproximar moradia do emprego e reduzir desigualdades espaciais.
A Lei 16.402/16 veio com o rótulo de modernizadora, prometendo colocar em prática os princípios do PDE. Seu foco? Criar novas zonas de adensamento, estimular o uso do transporte público e ampliar as Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS). Mas como veremos, a aplicação prática distanciou-se bastante desses objetivos teóricos.
A lei reorganizou a cidade em diferentes tipos de zonas: Zonas Mistas (ZM) para uso residencial e comercial, Zonas Exclusivamente Residenciais (ZER) focadas em baixa densidade e preservação de bairros tradicionais, Eixos de Estruturação da Transformação Urbana (ZEU) que incentivam grandes empreendimentos ao longo dos corredores de transporte, e as ZEIS, áreas destinadas à habitação social. Embora, no papel, isso parece promover uma cidade mais democrática, na realidade tem sido a perpetuação de um urbanismo excludente, ainda que com nova roupagem.
Uma das principais apostas da nova lei foi estimular o adensamento ao longo dos eixos de transporte. A ideia era lógica: mais gente morando perto de metrôs e corredores de ônibus, menos carros nas ruas. Mas o que vimos foi um movimento de valorização imobiliária acelerada nessas áreas, expulsando a população de baixa renda. O resultado? Uma onda de gentrificação: novas torres, apartamentos compactos voltados para classes médias e altas, e o afastamento gradual dos moradores mais pobres.
As Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) eram o grande trunfo social da lei. Mas na prática, sua implementação tem sido cheia de contradições. Muitas ZEIS ainda não foram efetivamente regularizadas; projetos habitacionais esbarram em burocracias e resistência política; o mercado imobiliário pressiona constantemente para reverter ou flexibilizar essas zonas. Na prática, o direito à cidade para os mais pobres continua sendo uma promessa distante.
As Zonas Exclusivamente Residenciais (ZER) mantêm o caráter elitista de alguns bairros. Áreas como Jardins, Pacaembu e Alto de Pinheiros seguem blindadas contra qualquer tentativa de adensamento ou diversificação de uso. Enquanto a periferia adensa-se de maneira precária, essas regiões seguem com baixa densidade e alto padrão de vida, alimentando a desigualdade urbana.
Sim, a lei tenta incentivar a moradia perto de transporte público. Mas, na prática, quem consegue morar nesses novos empreendimentos próximos a metrôs? Resposta curta e amarga: quem pode pagar. Enquanto isso, a população de baixa renda continua enfrentando longos deslocamentos, perpetuando a lógica da “cidade partida”, onde o emprego está no centro e a moradia, nas periferias.
Se tem um setor que a Lei 16.402/16 atendeu com eficiência foi o mercado imobiliário. A possibilidade de construir mais próximo ao transporte público, com menor exigência de vagas de garagem, abriu um novo filão de lucro para construtoras e incorporadoras. A produção de “Studios” explodiu em várias zonas da cidade, sem necessariamente atender ao déficit habitacional real da população de baixa renda.
Ouvi uma reportagem interessante no podcast de notícias UOL (Episódio #74 do UOL Prime), sobre a apuração que o Ministério Público de São Paulo (MP-SP) está realizando ao investigar a concessão de subsídios pela Prefeitura de São Paulo para a construção de quase 240 mil apartamentos do tipo HIS 2 (Habitação de Interesse Social faixa 2), destinados a famílias com renda entre três e seis salários mínimos. A suspeita é que parte dessas unidades, muitas delas studios de 25 a 40 m² localizados em bairros nobres como Itaim Bibi e Pinheiros, foi adquirida por pessoas de classe média alta ou investidores, que utilizam os imóveis para aluguel por plataformas como o Airbnb, contrariando a finalidade social do programa. A apuração aponta falhas graves na fiscalização da Prefeitura, que não teria controlado adequadamente o perfil socioeconômico dos compradores, permitindo que imóveis subsidiados fossem comercializados com valores de até R$ 19 mil por metro quadrado. Há indícios de fraudes, como compras feitas em nome de terceiros para burlar a exigência de renda. Se confirmadas as irregularidades, as construtoras podem ser obrigadas a devolver os benefícios fiscais recebidos e pagar multas pesadas. Enquanto isso, a Secretaria Municipal de Habitação afirma ter criado novas regras para aprimorar a fiscalização e notificou 48 empreendimentos para apresentar comprovação de renda dos compradores, enquanto a Procuradoria Geral do Município diz ainda não ter sido formalmente notificada sobre o inquérito.
Outro efeito preocupante é o apagamento de comunidades tradicionais e vulneráveis. Comunidades que vivem há décadas em zonas hoje valorizadas correm o risco de remoção. Regularizações prometidas não saem do papel. Projetos de requalificação urbana, na prática, tornam-se projetos de expulsão.
A lei fala em sustentabilidade, mas muitas vezes o que vemos é “greenwashing”. Pequenas exigências de área permeável por lote viraram o álibi ambiental. Não há diretrizes efetivas para combate às ilhas de calor urbanas. A permeabilidade urbana ainda é insuficiente para enfrentar os problemas de enchentes e escoamento.
Uma lei de zoneamento só funciona com fiscalização efetiva, e esse é um dos calcanhares de Aquiles da Lei 16.402/16. Obras fora dos parâmetros seguem ocorrendo. A fiscalização de uso e ocupação do solo é falha. A lógica de “aplicar primeiro, regularizar depois” continua prevalecendo.
E há ainda o que ficou de fora: diretrizes claras para enfrentamento das mudanças climáticas; normas mais rígidas para evitar despejos forçados; regras de incentivo real à habitação social nas zonas mais valorizadas; e integração mais forte entre zoneamento e políticas de saúde, educação e mobilidade urbana.
A Lei 16.402/16, apesar de avanços pontuais, é mais um capítulo da longa história de planejamento urbano excludente em São Paulo. O discurso oficial fala em inclusão e sustentabilidade, mas a aplicação prática tem favorecido o capital imobiliário e mantido as desigualdades territoriais.
Se quisermos, de fato, construir uma cidade mais justa, será preciso ir além de ajustes pontuais. Precisamos de um debate profundo sobre direito à cidade, com mais participação popular, mais fiscalização e, acima de tudo, mais coragem política para enfrentar os interesses econômicos que moldam a paisagem urbana.
Diante de tudo isso, ficam algumas perguntas:
A nova lei realmente combateu a segregação espacial ou apenas a redesenhou?
Como garantir que os instrumentos urbanísticos atendam a quem mais precisa e não ao capital especulativo?
A implementação das ZEIS tem sido efetiva ou apenas simbólica?
Por que a fiscalização urbanística segue tão frágil em São Paulo?
Como evitar que a densificação incentive ainda mais a gentrificação?